Vamos, agora, a um dos melhores exemplos bíblicos: o de José, no Egito; José, um dos tipos de Cristo no Antigo Testamento.
Aos 17 anos foi terrivelmente ofendido por seus irmãos, que o venderam a mercadores ismaelitas. Durante cerca de 20 anos José passou por toda sorte de sofrimentos em decorrência daquela traição. E agora, pela segunda vez frente a eles, dá-se a conhecer: “Eu sou José, vosso irmão, a quem vendestes para o Egito”; logo repete: “não vos entristeçais nem vos pese aos vossos olhos por me haverdes vendido para cá” - Gn 45.4-5. Muito tempo depois, seus irmãos mandaram dizer-lhe que Jacó, antes de morrer, pedia a José que os perdoasse. José lhes diz, então: “porventura estou eu em lugar de Deus? Na verdade vós bem intentastes mal contra mim, mas Deus o tornou em bem”. Por que José relembrou a seus irmãos, por três vezes, o fato tão vil de tantos anos atrás? Não tinha ele misericórdia para perdoar? Tinha sim, mas ele não vira sinais de arrependimento neles e, portanto, não havia condições para perdoá-los. Por isso não podia esquecer e era seu dever repreendê-los, mexer na consciência dos irmãos. Jamais, porém, exerceu vingança contra eles; ao contrário, protegeu-os, amou-os. Nesse sentido, só, já os havia perdoado.
O perdão ensinado por Deus não é um perdão poético, romântico, formal, de aparências. É perdão consciente, sincero, voluntário, e também inteligente. A repreensão ao ofensor - Lv 19.17; Lc 17.3; Mt 18.15 e outros textos, é para o bem do ofensor, para levá-lo ao arrependimento. Depois do arrependimento é que pode vir o perdão. Isso é tanto no perdão de Deus como no nosso perdão.
Cristo amava profundamente, mas não agia por sentimentalismo, nem pede que sejamos sentimentalistas. Cristo amou a todos e por todos intercedeu, mas nem por isso perdoou a todos, mas apenas aos que se arrependeram. Estêvão, da mesma forma, intercedeu por seus inimigos, mas não minimizou sua falta - “não lhes imputes este pecado”. José foi uma das mais extraordinárias e santas figuras das Escrituras, mas também não minimizou a culpa dos irmãos, e, pelo menos três vezes, tentou sacudir suas consciências.
O conceito poético e sentimental de perdão não é bíblico, e é nocivo. Cristãos há que mentem, ofendem, pecam contra um irmão, e simplesmente pensam que o irmão tem obrigação de perdoá-los, embora não tenham dado demonstrações de estarem arrependidos. E se o ofendido lembra a ofensa, é taxado de possuir um “coração duro”, incapaz de perdoar. Pessoas assim são capazes de pedir perdão, até por medo de receberem a vingança, sem estarem arrependidas. Precisam ser ensinadas sobre a necessidade de se arrependerem para terem o direito ao perdão.
O amor não elimina nem anula a justiça. Se fosse assim, Cristo não teria precisado morrer. O perdão de Deus é baseado num ato de justiça: a expiação realizada por Cristo, e é dado somente a quem está arrependido. O perdão de uma pessoa ao seu ofensor, também. Este é o perdão ensinado por Deus nas Escrituras.
Então, podemos agora entender melhor: Estêvão, na realidade, pedia a Deus que estendesse a seus algozes a graça salvadora, levando-os ao arrependimento, pois sem arrependimento não há perdão.
Quando Cristo exclamou na cruz “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”, estava também pedindo ao Pai que os conduzisse à condição de serem perdoados. Diante da mulher adúltera, Cristo não disse simplesmente “Nem Eu também te condeno”, mas disse também “vai-te e não peques mais”. Era a restauração que Cristo lhe estava estendendo: a graça de não mais voltar ao pecado - o verdadeiro arrependimento.
Também é interessante notar que as Escrituras não nos ensinam a simplesmente pedir perdão. Ensinam-nos a confessar o pecado; e confessar é declará-lo com verdadeiro arrependimento: reconhecê-lo, sentir-se envergonhado e triste, e abandoná-lo. Quando não há arrependimento, o pedido de perdão é hipócrita e covarde, é apenas fuga e medo do castigo. Isso é o que aprendemos com a repreensão de João Batista em Mt 3.5-8: “...raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira futura?...” Não basta declarar-se faltoso, não basta pedir perdão; é necessário estar realmente arrependido, e isso se faz com a mudança de posição e de atitude - produzir o fruto do arrependimento, isto é, uma mudança completa, a “metanóia”, conversão.
Em resumo: Deus nos ensina que temos de ter a mesma disposição que Ele tem, de perdoar ao que está arrependido. Ensina-nos que nunca poderemos nos vingar; só a Ele pertence a vingança. Ensina-nos que temos de perdoar inúmeras vezes aquele que diz “estou arrependido”, dando ao ofensor um voto de confiança, pois não somos Deus para conhecer o seu íntimo. “Estou eu em lugar de Deus?” - Gn 50.19.
Como é bom perdoar! Tirar de nosso coração algo que nos está magoando, uma ofensa que nos foi feita! Como é bom sentir que nosso ofensor se arrependeu realmente e então pode ter o perdão de Deus e o nosso. Muitas vezes não é preciso o ofensor nos dizer alguma coisa, basta sua mudança de atitude, que é a melhor prova de arrependimento.
Perdoar é difícil, muitas vezes, mas a ordem de Cristo é esta: “se teu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele só...” - Mt 18.15-17. Estaremos ajudando, com amor, o irmão a reconciliar-se com Deus - o único que pode perdoar pecados - e estaremos, diante de seu arrependimento, ganhando o irmão!
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